
Sérgio Moro, Deltan Dallagnol e sede do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) (Foto: CNJ | ABR)
Perícia em aparelho usado pela força-tarefa analisa 30 mil gravações e apura possível esquema de espionagem sem autorização judicial
A Polícia Federal aprofundou a investigação sobre o uso de um aparelho de gravações telefônicas pela força-tarefa da Lava Jato no Ministério Público Federal do Paraná, ampliando o cerco jurídico em torno de seus principais expoentes, entre eles o ex-juiz Sergio Moro e o ex-procurador Deltan Dallagnol. A apuração busca esclarecer se o equipamento foi utilizado para realizar grampos ilegais, sem autorização judicial, atingindo advogados, investigados, testemunhas e até autoridades com foro privilegiado.
As informações foram reveladas em reportagem de Aguirre Talento, no jornal Estado de S. Paulo, que teve acesso exclusivo aos detalhes do inquérito conduzido sob sigilo. A perícia foi autorizada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), após decisão do ministro Luís Felipe Salomão, que reverteu um parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR) favorável ao arquivamento do pedido.
Aparelho gravou cerca de 30 mil ligações
O equipamento periciado é o modelo Vocale R3, utilizado nos ramais telefônicos da força-tarefa entre 2016 e 2020. De acordo com dados preliminares da investigação, o sistema realizou aproximadamente 30 mil gravações telefônicas, das quais ao menos 341 foram efetivamente acessadas pelos usuários. A Polícia Federal também trabalha com a suspeita de que houve escutas ativas realizadas à revelia dos titulares das linhas.
Por determinação do STJ, os peritos estão autorizados a analisar apenas os logs e metadados do sistema, sem acesso ao conteúdo das conversas. A perícia técnica busca identificar quem operou o equipamento, quem teve acesso às gravações, se arquivos foram apagados e se houve armazenamento ou cópia de dados em nuvem.
No voto que embasou a decisão, o ministro Luís Felipe Salomão ressaltou que o foco da investigação não é o teor das conversas, mas o funcionamento do sistema e a cadeia de responsabilidades. Segundo ele: “A perícia requerida pela autoridade policial não está direcionada ao conteúdo dos diálogos que foram gravados, mas a como esse material foi armazenado, quem eram os responsáveis pela gestão do equipamento e quem teve acesso às gravações”.
Suspeita de crime e possível responsabilização de Dallagnol
O inquérito apura a prática do crime de interceptação telefônica ilegal, cuja pena prevista varia de dois a quatro anos de detenção. A investigação busca identificar se houve responsabilidade direta do então coordenador da Lava Jato, Deltan Dallagnol, e de outros integrantes da força-tarefa. Dallagnol nega irregularidades.
A suspeita central é de que o aparelho, acoplado aos ramais da operação, tenha funcionado como um sistema de vigilância permanente, gravando indiscriminadamente comunicações internas e externas da Lava Jato, sem controle judicial, em mais um episódio que reforça as denúncias de abusos e práticas de lawfare associadas à operação.
Funcionamento coincide com auge político da Lava Jato
O período em que o Vocale R3 esteve ativo coincide com os momentos mais sensíveis da Lava Jato e da política nacional. O equipamento começou a operar em 2016, ano do golpe de Estado contra Dilma Rousseff, atravessou a divulgação da chamada “Lista de Fachin”, em 2017, e seguiu ativo durante a prisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2018, além da eleição de Jair Bolsonaro.
A desativação do sistema ocorreu apenas em 2020, no contexto do enfraquecimento da operação, após a série de reportagens da Vaza Jato, que expôs diálogos comprometendo a imparcialidade da Lava Jato, e durante o desmonte formal da força-tarefa promovido pela gestão de Augusto Aras na Procuradoria-Geral da República.
Entraves, atrasos e disputa de competência
A Polícia Federal relatou à Justiça dificuldades para obter o equipamento. O pedido de acesso foi feito em janeiro de 2024, mas, segundo a corporação, a Corregedoria do Ministério Público Federal adotou “claras condutas procrastinatórias”. O aparelho, que estava guardado em Brasília, só foi entregue após a PF sinalizar a possibilidade de busca e apreensão.
O caso também enfrentou uma longa disputa sobre a competência para julgamento. Inicialmente, a investigação tramitou na Justiça Federal do Paraná, foi enviada ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região e, apenas em setembro de 2025, chegou ao STJ, sob o entendimento de que a força-tarefa contava com procuradores regionais da República, que possuem foro naquela corte.
Buscas na Lava Jato ampliam suspeitas
Em paralelo, a 13ª Vara Federal de Curitiba, símbolo do poder concentrado da Lava Jato, foi alvo de busca e apreensão determinada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli. A medida teve como objetivo apurar indícios de que a operação teria monitorado ilegalmente autoridades com foro privilegiado.
Embora essa apuração tenha um escopo específico, a investigação conduzida no STJ sobre o Vocale R3 é mais abrangente e reforça a hipótese de que a Lava Jato pode ter se valido de métodos clandestinos de investigação, à margem da lei e das garantias constitucionais.
Deltan fala em autoproteção e acusa perseguição
Em nota divulgada e reproduzida pelo jornal Estado de S. Paulo, Deltan Dallagnol afirmou que o equipamento foi adquirido como medida de segurança institucional, diante de ameaças sofridas por integrantes da força-tarefa. Segundo ele, “o equipamento de autogravação foi adquirido como medida institucional de segurança, em um contexto em que procuradores passaram a receber ameaças à própria vida e à de suas famílias”.
O ex-procurador sustenta que apenas servidores que solicitaram a gravação de seus próprios ramais tinham acesso às conversas e que eventuais gravações indevidas teriam ocorrido por esquecimento de desligamento de linhas após a saída de servidores da equipe. Ele afirma ainda: “Não há qualquer evidência de que terceiras pessoas tenham gravado ou escutado conversas dos ramais que foram autogravados”.
Dallagnol também nega ter utilizado o equipamento em seu próprio ramal ou ter exercido poder administrativo sobre o sistema. Para ele, a investigação representa “um instrumento de perseguição institucional”, afirmando que “o verdadeiro escândalo não é a autogravação, é a perseguição”.
A perícia técnica deverá esclarecer se o uso do aparelho se limitou a uma alegada autoproteção ou se configurou mais um capítulo de abusos estruturais da Lava Jato, aprofundando o debate sobre violações de direitos, instrumentalização do sistema de Justiça e lawfare no Brasil.
Comentários
Postar um comentário