Onde os Correios param, o Brasil desaparece

Os trabalhadores dos Correios querem a suspensão de qualquer medida que afete a qualidade dos serviços ou os direitos dos empregados (Foto: Joédson Alves/Agência Brasil)

Os Correios garantem eleições, ações emergenciais e a presença do Estado em cada região do país; se essa rede falha, desaparece o Brasil

Washington Araújo
brasil247.com/

Desde a sua fundação, os Correios foram mais do que uma empresa estatal: foram a circulação sanguínea de um país que sempre teve mais território do que presença pública, mais distância do que estrada, mais Brasil do que meios para costurá-lo. Criada em 1969, mas herdeira de funções que remontam ao século XIX, a instituição consolidou-se como a forma mais concreta de o Estado alcançar cada cidade, cada povoado, cada comunidade ribeirinha, cada aldeia indígena.

A presença capilar — hoje distribuída em mais de dez mil unidades de atendimento — não é um luxo administrativo: é um pacto de unidade nacional. É a prova de que o Estado brasileiro, mesmo quando tarda, chega.

Essa capilaridade, no entanto, precisa ser vista à luz de um mundo que também enfrenta o declínio das cartas, o avanço da digitalização e o rápido crescimento do comércio eletrônico.

O mito de que apenas o Brasil enfrenta dificuldades em seu serviço postal não resiste a uma busca simples por dados oficiais.

Os Estados Unidos mantêm sua estatal — a United States Postal Service (USPS) — mesmo tendo registrado um prejuízo de US$ 6,5 bilhões no ano fiscal de 2023, segundo relatório divulgado pela Reuters. E, apesar disso, ninguém cogita privatizá-la. A razão é simples: ela é responsável, entre tantas funções, por assegurar a logística eleitoral de um país de dimensões continentais e de democracia complexa. A USPS é deficitária, sim, mas é estratégica demais para ser entregue ao varejo das conveniências privadas.

O mesmo ocorre na França. A La Poste Groupe, estatal francesa, teve receita de 34,1 bilhões de euros e lucro de 514 milhões de euros em 2023, de acordo com seus relatórios públicos. A França não abre mão de controlar seu sistema postal porque sabe que ele articula serviços financeiros, bancários e públicos que não podem ser completamente submetidos ao mercado.

Na Alemanha, os relatórios da agência reguladora Bundesnetzagentur mostram que o volume de cartas caiu de 11,93 bilhões em 2022 para 10,92 bilhões em 2023 — quase um bilhão de objetos a menos. Ainda assim, o país mantém forte regulação estatal e padrões obrigatórios, reconhecendo que o serviço postal universal é parte do funcionamento do Estado.

No Reino Unido, mesmo com a privatização do Royal Mail, o governo manteve a obrigação de entrega nacional: o mercado pode explorar lucros, mas não pode escolher bairros.

Trocando em miúdos: países que levam a sério a sua soberania postal não terceirizam sua integridade territorial. Entendem que um território não se mantém unido apenas com mapas, mas com presença real — física — que chega a todos os cidadãos, sobretudo nos momentos em que o país precisa funcionar como um organismo só.

No Brasil, o debate apresenta graves distorções. E isso não é de hoje. O futuro dos Correios é algo muito sério e existe reflexão profunda e não simplificações, quase sempre levianas e irresponsáveis.

Muitos analistas insistem em comparar os Correios a empresas privadas que operam apenas nas rotas lucrativas, ignorando que a estatal ficou encarregada do “osso” — a entrega universal — enquanto o mercado abocanhou o “filé” das encomendas rápidas nos grandes centros.

É fato verificável que a FedEx, a DHL, o Mercado Livre, a Amazon Logistics e outras empresas atuam onde há densidade populacional, acesso simples, risco baixo e retorno alto.

Não há mercado disposto a manter operações em vila, ilha, aldeia, sertão ou floresta. Os Correios, sim, mantêm.

A crítica financeira também exige contexto.

O Relatório de Administração de 2024 informa que os Correios possuem aproximadamente 84 mil empregados, todos com vínculo formalizado, salários garantidos, direitos trabalhistas preservados e responsabilidades públicas claras. Esses números não são acessórios: sustentam a qualidade do serviço e garantem que a estatal não funcione às custas de precarização — como ocorre em parte expressiva das estruturas logísticas privadas, que se baseiam em trabalhadores sem vínculo, pagos por entrega e submetidos à insegurança contratual.

Quanto ao caixa, os dados são verificáveis: prejuízo de cerca de R$ 767 milhões em 2022 e aproximadamente R$ 596 milhões em 2023. A situação se agravou em 2024 e 2025, o que levou à necessidade de pedido de crédito à União, plano de reestruturação acompanhado pelo Tribunal de Contas da União, venda de imóveis e programa de desligamento voluntário. A estatal tenta reencontrar seu equilíbrio num ambiente hostil: o mercado privado acelerou a disputa no setor de encomendas ao mesmo tempo em que a digitalização reduziu drasticamente o volume de cartas, boletos, contas e extratos — pilares que sustentaram o modelo postal por décadas.

Mas há um dado que frequentemente passa despercebido: poucas instituições brasileiras são tão decisivas quanto os Correios em situações de emergência nacional.

Basta lembrar que, quando milhões de aposentados foram lesados por empresas fraudulentas, foi a capilaridade dos Correios que permitiu à União implementar, em tempo recorde, processos de regularização e pagamento em municípios onde nenhum outro órgão federal possui presença física.

O mesmo se viu na distribuição de insumos de saúde durante crises regionais, no envio de comunicados oficiais a populações isoladas e, sobretudo, na logística das eleições brasileiras.

A cada dois anos, os Correios transportam urnas eletrônicas, lacres, formulários e materiais sensíveis para todos os municípios — incluindo áreas onde só se chega de barco, avião pequeno ou estradas improvisadas. É uma operação silenciosa, mas monumental, que garante o que muitos países mais ricos não conseguem: eleições funcionando com pontualidade em cada extremo do território. Nenhuma empresa privada aceitaria esse encargo sem exigir tarifas inviáveis ou subsídios extremos.

Os Correios aceitam porque essa é sua vocação: carregar o país inteiro, e não apenas sua parte rentável.

A reestruturação que a estatal vive não é o prenúncio de sua substituição, mas o passo necessário de um organismo que precisa se adaptar às novas exigências tecnológicas sem abandonar a missão pública que o mercado não abraça. Qualquer modernização séria exige investimentos, governança e revisão operacional — não desmonte.

Porque se o Brasil entregar os Correios ao mercado, estará entregando também o direito de existir plenamente como país. Estará dizendo que alguns territórios importam mais que outros, que algumas vidas merecem ser alcançadas e outras não. E essa é a antítese do ideal de nação.

Os Correios não são apenas uma instituição pública. São o último fio contínuo que conecta o Brasil inteiro — e se esse fio se rompe, não é uma empresa que desaparece. É o Brasil.

Chave: 61993185299


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