
Tornozeleira de Jair Bolsonaro (Foto: SEAP/Divulgação)
O que precisa ser confrontado agora é o enredo que Bolsonaro tenta construir
brasil247.com/
A audiência de custódia de Jair Bolsonaro, realizada no início da tarde de 23 de novembro por videoconferência, registrou algo raro na trajetória pública do ex-presidente: a admissão direta de que tentou violar a própria tornozeleira eletrônica. A ata assinada pela juíza auxiliar Luciana Yuki Fugishita Sorrentino é objetiva. Bolsonaro reconhece que utilizou um ferro de solda para “mexer” no equipamento, atribui o episódio a um “surto” desencadeado pela combinação de remédios prescritos por médicos distintos e assegura que não tinha intenção de fuga. A prisão preventiva foi mantida.
A defesa, nas entrelinhas, tenta transformar o episódio em um caso de iatrogenia psiquiátrica. Bolsonaro teria sido vítima de uma tempestade neuroquímica que dissolveu seu senso de realidade e o levou a acreditar que havia uma escuta escondida no dispositivo. A narrativa, embora embalada pela linguagem clínica, perde força diante da lógica, da técnica e do histórico médico do próprio ex-presidente.
Comecemos pelo básico. Tornozeleiras eletrônicas são projetadas para serem fisicamente invioláveis. Possuem sensor de temperatura, loops elétricos internos, detecção magnética e um protocolo contínuo de Keep Alive criptografado. O ferro de solda acionaria o alerta de calor. Qualquer corte rompendo trilhas internas dispararia alarmes. Uma interrupção do sinal seria imediatamente reconhecida como violação. Não há amadorismo possível diante de sistemas feitos para sobreviver ao amadorismo. A tese de que Bolsonaro “mexeu” no equipamento por horas sem romper a cinta, sem inutilizar a antena, sem acionar sensores e sem disparar alertas é tecnicamente improvável.
Mas mesmo que fosse tecnicamente possível, resta a impossibilidade física. O próprio conjunto de laudos e relatórios médicos entregues ao STF ao longo dos últimos anos sustenta que Bolsonaro vive em estado de fragilidade abdominal crônica. Em abril de 2025, apenas sete meses antes da tentativa, ele passou por uma reconstrução extensa da parede abdominal. Em setembro, os soluços violentos e o refluxo o levaram a uma crise capaz de comprometer respiração e estabilidade. Ele possui aderências severas, anemia persistente, episódios de pré-síncope e limitações que, segundo sua defesa em outras ocasiões, o impedem até de permanecer longos períodos sentado.
E é aqui que tudo começa a ruir. Para soldar uma tornozeleira, seria necessário dobrar o tronco, torcer o abdômen, sustentar a posição e manejar uma ferramenta de precisão por longos minutos. É um movimento que aumenta a pressão intra-abdominal, irrita o diafragma, desencadeia soluços mecânicos e exige coordenação fina. Nada disso combina com a biografia médica do paciente em risco de morte. Ou Bolsonaro é incapaz de se curvar sem desencadear uma crise, como sua defesa sustentou durante anos, ou possui vigor suficiente para realizar trabalhos manuais complexos na madrugada. As duas narrativas não cabem no mesmo corpo.
Enquanto o ex-presidente tentava violar a tornozeleira e era levado à prisão preventiva, Michelle Bolsonaro cumpria agenda no Ceará, em mais um evento do PL Mulher voltado à construção meticulosa de sua própria rota política. Ali, como de costume, oferecia sua pedagogia da obediência feminina apresentada como virtude cívica, enquanto pavimentava silenciosamente o caminho que escolheu trilhar. Não estava ao lado de Bolsonaro no momento mais crítico, mas não demorou a se posicionar. Em poucas horas, já circulava um vídeo cuidadosamente produzido no qual se apresenta como espécie de guia moral de uma revolta não violenta e espiritual. Michelle não acompanhou o colapso, mas apareceu com precisão cirúrgica onde desejava estar, e essa escolha revela mais do que qualquer palavra.
A audiência, no entanto, revela algo mais grave que a somatória dos impossíveis. Bolsonaro afirma que ninguém percebeu nada. A filha dormia. O irmão não viu. O assessor não ouviu. Todos estavam na casa, mas ninguém notou o ex-presidente manipulando um ferro de solda acoplado a um dispositivo de monitoramento. A tese do ato solitário não é apenas improvável. Ela é conveniente. Isola a responsabilidade, protege eventuais cúmplices, evita perguntas óbvias sobre quem tinha acesso ao equipamento e quem poderia ter orientado ou facilitado o episódio.
A ata de custódia deixa claro que Bolsonaro admite o ato. O que precisa ser confrontado agora é o enredo que ele tenta construir ao redor. A tempestade neuroquímica pode explicar a paranoia. Não explica a engenharia. A reconstrução abdominal pode justificar a dor. Não justifica a posição corporal. A vulnerabilidade física pode sensibilizar o público. Não harmoniza com ferro de solda, precisão e manipulação prolongada.
O episódio deixa a sensação de que ainda falta peça no quebra-cabeça. Seja por omissão, seja por conveniência, a narrativa de madrugada que ele tenta vender não fecha. Não fecha porque o corpo não sustenta. Não fecha porque a técnica não permite. Não fecha porque a suposta solidão da operação não convence.
E justamente por não fechar é que a audiência de custódia se torna tão reveladora. Bolsonaro confessou a tentativa. Agora falta saber quem mais estava acordado naquela casa, mesmo que todos jurem que dormiam.
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