A moral de Damares Alves

Imagem: Orkhan Farmanli

Por ARTHUR OSCAR GUIMARÃES*

A dualidade entre o discurso e a prática na trajetória de Damares Alves, e suas implicações na sociedade brasileira

1.

O texto de John Karley de Sousa Aquino “Os evangélicos e os materialismos da moral”, publicado no site A Terra é Redonda, gerou em mim imensa curiosidade.

Não se trata de comentá-lo como se fosse um crítico, que a partir de conceitos fundamentais da epistemologia e filosofia qualificasse o que li com olhares a priori (independente da experiência) e/ou a posteriori (dependente da experiência e da observação, ou seja, adquirido após a experiência da leitura feita), postura que permitiria (sic) ao leitor desatento a tentativa de desqualificar as análises ali apontadas.

O que pretendo com essa busca – ratifico que sem a preocupação de identificar ‘falhas’, ‘fragilidades’ ou até mesmo ‘equívocos’ na análise – é debater a ideia dos “materialismos” (assim mesmo, no plural), conceito que suscitou a ideia de estar diante da ideia do “copo meio cheio e meio vazio”.

Uma primeira questão: nem todos do nosso campo político-ideológico tratam os evangélicos como “ignorantes e conservadores”. E somado a esse aspecto, quero crer que há um ponto a se considerar quando pretensamente “ridicularizamos e menosprezamos a classe trabalhadora por conta do seu moralismo”.

Há trabalhadores em todas as vertentes religiosas, inclusos os denominados “sem religião”. Então, a questão central seria a discussão daqueles que se intitulam grandes líderes dos evangélicos e, dessa forma, da classe trabalhadora evangélica.[i] Antes de maiores análises, explicito em um quadro, o que muitos entendem ser os maiores líderes evangélicos no Brasil:


2.

Gostaria muito de discutir a atuação de cada um desses líderes evangélicos constantes do quadro acima, mas vou, em razão do espaço limitado desta publicação, me eximir de tais análises e me circunscrever, por razões específicas e pela atualidade dos fatos, à atuação política do líder evangélico Silas Malafaia[ii] (aquele mesmo, dos áudios estarrecedores trocados com Jair Bolsonaro), que demonstram evidente ascendência política do referido pastor sobre a atuação do ex-presidente da República e seu filho, Eduardo Bolsonaro.

Antes de ir em frente, nesse ponto dou um passo atrás, pois penso relevante resgatar a imagem que já começa a ficar distante em nossas mentes, constante do depoimento da pastora evangélica, atual Senadora da República, quando em 2018 a senadora Damares Alves descreveu seu encontro com Jesus: “Num dia em que eu estava com o veneno, em cima do pé de goiaba [ao lado da casa de seu pai] … eu vi Jesus se aproximando”.

Ela contou que tinha 10 anos na época e que sofria “todos os dias”… e complementou dizendo que aconselhou Jesus, em seu sonho, a não subir no pé de goiaba, pois “ele não sabia” e “poderia se machucar”.[iii]

Por essa e outras muitas, dezenas, centenas de passagens dos líderes, é que discordo da ideia de que “ridicularizamos e menosprezamos a classe trabalhadora por conta do seu moralismo”, pois não se trata da classe trabalhadora, mas dos líderes da classe trabalhadora evangélica.

Todavia, não poderia deixar de explicitar minha concordância com John Karley de Sousa Aquino quando ele usa em seu texto o adjetivo “famigerada” como valor intensificador da “onda conservadora”, que assolou o País nos últimos anos, da qual Damares Alves é parte integrante, mas o pastor Silas Malafaia é, certamente, expressão maior. Mas se o debate é sobre “materialismos” e a atenção se volta para a “classe trabalhadora”, penso estarmos diante da inescapável ideia de desenvolvimento.

3.

Surge uma segunda questão: Se o debate é sobre desenvolvimento, importa discutir que desenvolvimento desejamos para o Brasil? A resposta é sim. Então, não vou muito longe.

Resgato aqui as ideias de Ignacy Sachs que vincula essa ideia aos seguintes princípios básicos de uma interpretação, denominada ecodesenvolvimento, já antiga na literatura, que se traduziria na: (i) satisfação das necessidades essenciais da população; (ii) solidariedade com as gerações futuras; (iii) participação da população envolvida; (iv) preservação dos recursos naturais e do meio ambiente em geral; (v) elaboração de um sistema social que garanta emprego, segurança social e respeito a outras culturas, e programas de educação.[iv].

Nesses termos, a partir do amplo conceito de Sachs, sabemos tratar-se, na prática, de uma verdadeira revolução, ou até mesmo, de uma nova plataforma do “Bem viver” (Dagnino, 2024),[v] que em princípio não vem recebendo a atenção devida da parte do Estado e, pretensamente, vem sendo tratada pelos líderes evangélicos.

Apresento, então, uma terceira questão: como não nos aprofundaremos na análise do papel dos líderes evangélicos, importa – ao menos – sabermos quem são os evangélicos no país, segmento central no debate aqui proposto. Para isso, resgato o texto “Evangélicos no Brasil: de quem estamos falando” (Sprandel, 2025),[vi] no qual a autora apresenta os dados do crescimento desse segmento religioso, quando afirma: “Em 1970, os evangélicos representavam 5% da população brasileira. Em 2010, esse número saltou para 21,6%. Em 2022, eram 26,9% da população, o equivalente a cerca de 47,4 milhões de pessoas”.

Trata-se de cenário que não desconsidera o fato de que junto ao aumento dos evangélicos verificou-se a “triplicação dos fiéis de religiões de matriz africana e presença crescente dos sem religião, o terceiro maior grupo, com 16,4 milhões de pessoas”. (Sprandel, Idem) Mas afinal, se as famílias dos evangélicos estariam “melhorando de vida” pela ação dos milhares de pastores distribuídos pelos mais distintos rincões desse País, esse fato permitiria acreditar que a “prosperidade” das famílias (se de fato ocorreu), encontraria explicação na opção ser evangélico e não católico, ou mesmo outra opção religiosa.

Essa conclusão parece não encontrar respaldo nem nos dados do Censo 2022 (IBGE), nem nas análises da autora, que não permitem atestar a prosperidade advinda da opção evangélica e, nem mesmo, na existência já questionada de uma “expectativa hiperinflacionada de crescimento evangélico”, visto que “o ritmo desacelerado registrado pelo Censo de 2022 contraria essas previsões e relativiza o impressionismo, muitas vezes repetido, de que o país caminhava inevitavelmente rumo a se tornar um “evangelistão”.” (Toniol, 2025, pag. 7; Apud. Sprandel, 2025.)

A título de complementação dessa linha de raciocínio, merece destaque o dado – nada desprezível – presente no perfil sociodemográfico do Censo 2022, de que os evangélicos têm perfil mais jovem que outros grupos religiosos, sendo que 31,6% desse subconjunto (evangélicos) têm entre 10 e 14 anos. Algo como 15 milhões de pré-adolescentes! Portanto, em percentuais e números consideráveis, penso que não estamos falando de uma classe trabalhadora evangélica abandonada pela esquerda por falso moralismo ou por algum outro tipo de moralismo.

Talvez seja o caso de, como mencionado por Sprandel, considerarmos e resgatarmos a base do que prega o secularismo,no qual está presente a “ideia de que o governo e outras instituições públicas devem ser separadas das influências religiosas”, defendendo que as “decisões políticas e sociais devem ser baseadas em princípios racionais e universais, em vez de crenças religiosas específicas”. Para essa mesma autora, isso “garante que todas as pessoas, independentemente de sua fé ou falta dela, sejam tratadas de maneira justa e igualitária.” Sprandel (Op. cit.)

A pastora Damares Alves tinha razão. O tombo da goiabeira pode machucar!

*Arthur Oscar Guimarães é doutor em sociologia pela UnB.

Referências


GALLAS, Daniel. Por que Moraes proibiu Silas Malafaia de falar com Bolsonaro e sair do Brasil. BBC News Brasil em Londres (21 agosto 2025); In: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cwy0je80ezqo.

OLIVEIRA, A.J. de. Inovação tecnológica e o meio ambiente – um estudo das empresas do setor de calçados de Campina Grande Paraíba. 3.1.3 A década de 80: definindo o desenvolvimento sustentável (páginas 73-77). Tese de Doutorado. UFCG (Outubro 2009). In https://1library.org/article/a-década-de-definindo-o-desenvolvimento-sustentável.zkkmm78z.

PODER360. Futura ministra, Damares Alves afirma que viu Jesus ‘subir em pé de goiaba’. In https://www.poder360.com.br/brasil/futura-ministra-damares-alves-afirma-que-viu-jesus-subir-pe-de-goiaba/.


Notas

[i] A respeito da classe trabalhadora brasileira, faço a sugestão da leitura do interessante Relatório resultante de pesquisa coordenada pela Profª Delana Corazza (ainda em versão preliminar). A situação da classe trabalhadora no Brasil | O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. In https://thetricontinental.org/pt-pt/brasil/a-situacao-da-classe-trabalhadora-no-brasil/.

[ii] GALLAS, Daniel. Por que Moraes proibiu Silas Malafaia de falar com Bolsonaro e sair do Brasil. BBC News Brasil em Londres (21 agosto 2025); In https://www.bbc.com/portuguese/articles/cwy0je80ezqo.

[iii] PODER360. Futura ministra, Damares Alves afirma que viu Jesus ‘subir em pé de goiaba’. In https://www.poder360.com.br/brasil/futura-ministra-damares-alves-afirma-que-viu-jesus-subir-pe-de-goiaba/.

[iv] OLIVEIRA, A.J. de. Inovação tecnológica e o meio ambiente – um estudo das empresas do setor de calçados de Campina Grande Paraíba. 3.1.3 A década de 80: definindo o desenvolvimento sustentável (páginas 73-77). Tese de Doutorado. UFCG (Outubro 2009). In https://1library.org/article/a-década-de-definindo-o-desenvolvimento-sustentável.zkkmm78z. Segundo a autora, “este conceito foi utilizado pela primeira vez, em 1973, pelo canadense Maurice Strong, para definir uma proposta alternativa de política de desenvolvimento”.




 

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